Carta de um colega de profissão, professor de História – a história se repete…

Recebi esta mensagem de um colega de profissão, mais um que se vê frustrado e obrigado a freiar seus impulsos sonhadores.

Solicitei autorização para colocá-la inteira aqui, pois acho um lindo depoimento, que pode nos fazer pensar em mais que nossas próprias dívidas.

Tentar fazer alguma coisa contra este sistema educacional que aí está é insano.

Não tentar é ser calhorda.

Abraços,

Declev Reynier Dib-Ferreira

 

“Caro Declev!

É com muita satisfação que escrevo, pela primeira vez, para um colega de profissão cujos textos conheci há tão pouco tempo e que já me deixaram fascinados pela sua coragem, sinceridade e lucidez. Tenho poucas informações sobre você, até porque é a primeira vez que acesso o seu blog, mas imagino como deve ser difícil segurar a montanha de críticas que deves receber. Certamente os elogios são muitos e te deixam feliz e realizado… servindo como combustível para manter a caminhada. Suponho também que você deve, por muitas vezes, revoltar-se com a hipocrisia do nosso meio educacional, particularmente dos professores. Digo isso porque por mais que seja errado, é compreensível a desmoralização que recebemos de diretores e pedagogos imbecis que não suportariam um bimestre em sala de aula, nas condições que temos que lecionar, sem abandonar suas idéias “sem noção”, tomada de empréstimos de teóricos que nunca entraram numa turma com 40 adolescentes.

Antes de continuar, abro um parêntese para me apresentar e assim tornar a minha fala mais compreensível. Formei-me em História, no Rio, no fim de 2006. Tive a sorte de receber o diploma já concursado para a prefeitura de Volta Redonda. Quando saímos da faculdade, realmente não temos a noção do tamanho do desafio que temos pela frente. Passado um pouco mais de um ano lecionando naquela cidade, a minha personalidade falou mais forte do que minha razão e decidi expor o que sentia: fiz um desabafo.

“O Brasil não é mesmo um país sério! Não posso dizer outra coisa após o que vivi e vou viver pelos próximos 30 anos trabalhando na educação neste país.

Tenho 26 anos, sou historiador e professor de História, lecionando esta matéria desde o ano passado no ensino público da cidade de Volta Redonda – RJ.

Todos são unânimes em dizer que a educação deve ser prioridade no Brasil, ou em qualquer país que pense alto. Mas ela é mais do que isso, é uma forma de ascensão social. Esta é uma das maiores conquistas burguesas. Quando a hierarquia do nascimento deu lugar a hierarquia do dinheiro, a educação passou a ser a arma da burguesia européia para conquistar ou manter seu status. Colocar seus filhos nas melhores escolas era o mínimo que podiam fazer. Enquanto isso, os filhos do “resto” da população permaneciam ignorantes, em uma época que a idéia de ensino público e obrigatório estava engatinhando.

Quando a idéia de igualdade jurídica se difundiu, a educação passou a ser vista como forma de dar as mesmas oportunidades para todos. A escola pública nasceu para isso. Em algum momento ela se desviou do seu caminho até chegar ao estágio que está hoje.

No Brasil, assim como na saúde, a educação, no decorrer do Regime Militar, foi privatizada. Aqueles que possuíam dinheiro começaram a pagar um plano de saúde e uma escola particular para seus filhos. Cansados de esperar do governo, os ricos e a classe media preferiu pagar o preço. Esta situação apenas piorou o quadro nestas duas áreas essenciais. Sem a importante pressão daqueles que tem o dinheiro, a saúde e a educação pública do Brasil foi se degradando. Os mais pobres, que utilizam estes serviços, passaram a sofrer calados. A voz da população está com os mais ricos. Resumidamente, está é a história da educação. Chegamos aos dias atuais. Chegamos à minha realidade.

Eu era um sonhador. Agora percebo que sou utópico. Acreditei que poderia mudar o mundo. Claro que do meu jeito, dando a minha contribuição, transformando a realidade que estava ao meu alcance. Pensei o seguinte: estou indo dar aula em uma escola pública, mas quero fazer o melhor trabalho possível, dando o melhor de mim, como se estivesse na melhor escola particular, ganhando o melhor salário possível. Estes alunos precisam ter a mesma qualidade de ensino que um aluno de uma escola particular. Assim terão as mesmas oportunidades. Assim poderão disputar as mesmas vagas sem precisar das discutíveis cotas nas universidades. Pura inocência minha!

Quem coloca o seu filho em um colégio público o faz por necessidade financeira, salvo algumas exceções. Mas este mesmo pai deseja que sua criança tenha a mesma qualidade de ensino da escola particular. Eu mesmo penso assim. Meus filhos estudam e vão estudar em colégios públicos. A partir disso, quero fazer um alerta. O que os professores neste país estão cansados de saber deve ser de conhecimento também dos pais de alunos. A educação pública no Brasil é uma farsa!

Não estou aqui reclamando dos baixos salários e das péssimas condições de trabalho, objeto da maioria das reclamações dos professores em todo o país. Estes problemas são conseqüências e não a causa da falência do modelo educacional brasileiro. Estou aqui para denunciar uma prática que se tornou comum no ensino público, não só do município onde trabalho, mas no Brasil inteiro. O aluno é visto apenas como um número, e utilizado somente como ferramenta política. Estes números são transformados em dados e divulgados com objetivos eleitoreiros – 99% de crianças na escola; 99% de alunos com o ensino fundamental; 99% de alunos com o ensino médio; 0,1 de analfabetos etc. O resultado desta política se traduz no seguinte pensamento: “temos que melhorar os números, não importa como”.

Eu e inúmeros colegas de profissão estamos recebendo todo tipo de pressão para “dar nota” aos alunos, mesmo aqueles que não apresentam condições para tal. O nosso trabalho é avaliado de acordo com os índices de “aproveitamento”, leia-se: alunos com nota boa. Os melhores professores são os que têm os melhores índices. É evidente que ninguém gosta de ser considerado um fracassado. Acho que dá para perceber para onde caminhamos. As avaliações feitas no Brasil mostram o quanto nossos alunos estão deficientes. As notas são baixíssimas. Sem contar que existem escolas em que as avaliações são feitas pelos professores e não pelos alunos (como exemplo o colégio onde meus filhos estudam. A professora dizia aos alunos o que deveria ser colocado na avaliação da Provinha Brasil). Poucos são os alunos que chegam a acertar metade da prova. No entanto, como em uma mágica, os índices de aprovação nestas mesmas disciplinas avaliadas – Português e Matemática – chegam a 100%. Será que estas avaliações são muito exigentes? Como pode uma tamanha discrepância nos números. Cabe ao poder público tomar as devidas providências. E cabe a imprensa e a sociedade como um todo cobrar para que as salas de aula nas escolas públicas no país não sejam um depósito de crianças. Cabe também a classe dos professores não se conformar com tais práticas, exigindo mais respeito e autonomia na hora de avaliar seus alunos.

Sou concursado e mesmo assim sofro ameaças devido ao meu “aproveitamento” ruim. Imagine o que os milhares de professores contratados são obrigados a fazer, aprovando alunos visivelmente deficientes em suas matérias, devido ao medo de perderem seus empregos. Agüentar baixos salários, ser desvalorizado, não ter condições de trabalho, conviver com salas superlotadas e aturar a falta de respeito dos alunos e até dos próprios diretores (as) nas escolas. Este é o retrato da minha profissão. Por isso tão cedo deixei de ser um sonhador. Por isso tão cedo deixei de acreditar que mudarei alguma coisa. Por isso nosso país não é sério. Por isso ainda sofreremos por muito tempo. E ainda dizem que o brasileiro não desiste nunca.”

Mandei este texto para o sindicato dos professores a qual pertenço…o Sinpro, que por sua vez pediu autorização para publicá-lo em seu jornal mensal. Não vi problemas, uma vez que não citei nomes e me afirmaram que nada podia ser feito comigo futuramente.

Bastou a carta ser publicada para que recebesse os tapinhas nas costas dos colegas. Os elogios partiam das mesmas pessoas que não tinham a coragem de nem mesmo abordar o assunto nas reuniões da escola. Por ser uma cidade relativamente pequena, o texto tomou uma certa repercussão, até porque a secretaria de educação do município gostava de publicar que a qualidade do ensino era uma prioridade.

Fui convocado para uma reunião. Lá estavam a secretária de educação, a diretora do departamento pedagógico, o presidente da fundação de que eu faço parte, além de representantes do sinpro e algumas assessoras. O discurso foi de negar qualquer iniciativa para que as escolas do município pressionassem os professores, que nós tínhamos a liberdade na avaliação, que as denúncias seriam apuradas e as punições cabíveis executadas… no mais, muito blá-blá-blá.

Em um sistema de ensino com poucos professores, não precisa ser inteligente para saber como minha imagem ficou depois disso tudo.

Resumindo, hoje estou fora de sala de aula. Colocaram-me como implementador de informática. É a quarta escola que dou aulas em um pouco mais de dois anos. Os colegas do “tapinha nas costas” continuam calados… a diretora protagonista da minha carta acumulou a função de supervisora pedagógica… e continuamos a ser um país de merda.

Volto as minhas atenções para você e digo que profissionais como você estão em extinção na educação. Fico orgulhoso quando vejo exemplos como o seu, apesar de saber que a maioria “vende a alma para o diabo” e se conforma com o sistema. Se tivesse que usar uma palavra para ilustrar o que gostaria de falar contigo seria – parabéns.

Farei de tudo para divulgar os seus textos para os meus colegas. Se quiser, pode usar a minha carta no seu blog. Não tenho restrições à sua publicação.

Apesar dos meus 27 anos, passo por um momento de profundo pessimismo pela educação. Pretendia escrever outros artigos, como você faz, mas sempre me pergunto: será que vale a pena? Nesta imensa escuridão, a luz dos seus desabafos emocionados me conclama para continuar e usar o que resta das minhas esperanças.

Fecho com uma frase do lendário “Che” Guevara, que mostra como o mundo tem duas escolhas. Espero, como você, continuar seguindo a primeira:

“É melhor morrer de pé, do que viver de joelhos”

Luiz Eduardo
Professor

 

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Prticipe do Movimento:

SE EU FOSSE SECRETÁRIO(A) DE EDUCAÇÃO, O QUE EU FARIA?

Declev Dib-Ferreira

Declev Reynier Dib-Ferreira sou eu, professor, biólogo, educador ambiental, especialista em EA pela UERJ, mestre em Ciência Ambiental pela UFF, doutorando em Meio Ambiente pela UERJ. Atuo como professor na rede municipal de educação do Rio de Janeiro e também na Fundação Municipal de Educação de Niterói (FME), no Núcleo de Educação Ambiental (NEA). Sou coordenador de educação da OSCIP Instituto Baía de Guanabara (IBG) e membro/facilitador da Rede de Educação Ambiental do Rio de Janeiro (REARJ)... ufa! Fiz este blog para divulgar minhas idéias, e achei que seria um bom espaço para aqueles que quisessem fazer o mesmo, dentro das temáticas educação, educação ambiental e meio ambiente. Fiz outro blog, com textos literários (http://hebdomadario.com), no qual abro o mesmo espaço. Divirtam-se.

7 thoughts on “Carta de um colega de profissão, professor de História – a história se repete…

  • 23/04/2009 em 16:40
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    Sinto-me privilegiado por ter tido a oportunidade de estudar ao lado desse grande homem e profissional – Luiz Eduardo. Um grande amigo, e faço dessas as minhas palavras. O que sobra nele falta na grande maioria da nossa classe – CORAGEM. Infelizmente vivemos num país em que a ética, os valores, foram deixado de lado. Ser correto ou tentar lutar pelo que é certo é andar na contra-mão da sociedade. Sociedade essa que perdeu todos os valores de dignidade e justiça. Parabéns a vc Declev por esse espaço e ao amigo Luiz Eduardo pela sabedoria, capacidade e coragem de enfrentar todo um sistema complemente corrompido e falido. Que Deus continue abençoando e iluminando a vocês. Quem sabe, mais pessoas se encorajem e também partem pra luta, ao menos tentar. Esperança deve sempre existir, se não houver esperança pra que acreditar, pra que viver?
    Um abraço.

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  • 06/05/2009 em 10:10
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    Achava que era única a passar por situações frustrantes na área da educação pública, mas não mais, ao ler este texto e outros artigos de Declev.
    Luiz Eduardo é novo me identifiquei imensamente. Tenho 23 anos e tive dias péssimos para tentar, veja bem, TENTAR ser professora eventual, mas impossível. Primeiro a palhaçada da prova cancelada. Ou tem ou não tem. Simples. E, na minha opinião ter a prova significa “renovar”. Sofri preconceito. A grade de professores está estagnada, cursos são oferecidos com a intenção, também, de agregar pontos, e não como fonte de conhecimento e forma de criar novas possibilidades para educação.
    “Eu era um sonhador. Agora percebo que sou utópico.”
    Essa frase diz muito de nós que estamos aqui.
    Acho que muitos chegam com essa vontade de mudar mas diante das situações que acabam nos engolindo ficamos sem muita saída, porque a maioria é maioria.
    Eu fui atrás, tentei e muito, mas não consegui, zeraram meus pontos, que estavam entre os melhores com a prova, e voltei para o fim da fila.
    Rídiculo.

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  • 28/05/2009 em 09:56
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    Parabéns Professor Luiz Eduardo!
    Na hora em que o bicho pega, muita gente corre e nos sentimos muito sozinhos. O lamentável é que muitos omissos e capachos acabam ferrando os próprios colegas de profissão. Mas saiba que, embora distantes, existem pessoas como você com disposição para defender uma educação pública melhor e atacar essa hipocrisia imposta. Não desista, a luta continua, sempre. Namastê!

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  • 07/07/2009 em 16:23
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    Parabéns, Professor por suas palavras. Pessoas com a sua estima são caras. Me identifiquei com a frase: “Eu era um sonhador. Agora percebo que sou utópico.” Temos muita vontade de ver a evolução da educação, porém nos desanimamos algumas vezes mas não podemo desistir. A educação precisa de educadores e formadores de opinião como nós. Abraços!!!

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  • 19/10/2009 em 13:09
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    Declev,
    O texto é excelente, amplo, informativo, mas, infelizmente, peca por algumas idéias representadas especialmente por esse trecho: “…é compreensível a desmoralização que recebemos de diretores e pedagogos imbecis que não suportariam um bimestre em sala de aula, nas condições que temos que lecionar, sem abandonar suas idéias “sem noção”, tomada de empréstimos de teóricos que nunca entraram numa turma com 40 adolescentes.”
    É muito preconceito e desinformação! Destoa do resto do texto.
    Tirando esse trecho infeliz (e as idéias por trás dele), acho que esses textos-desabafos aqui do blog são muito bons!
    Um abraço,
    Regina.

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  • 19/11/2011 em 16:20
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    Parabéns!!! Conseguiu traduzir tudo o que realmente pensamos (alguns poucos)!! Precisamos mais pessoas com tamanha coragem!!!

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