Os índices governamentais – IDE-Rio, IDEB etc. – e a verdadeira qualidade da educação

A focalização da “qualidade” da educação ou do ensino unicamente em metas pré-estabelecidas ou em produtos quantificáveis numericamente esconde trágica e  perniciosamente a verdadeira realidade da educação.

A educação – afinal, não se faz só ‘ensino’ numa escola – não se dá somente com os alunos acertando “uma das questões abaixo” numa prova.

Pra começar a entender meu raciocínio vejam, por exemplo, os Objetivos do Ensino Fundamental descritos nos PCN:

Os PCNs indicam como objetivos do Ensino Fundamental que os alunos sejam capazes de:

  1.  
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      1. Compreender a cidadania como exercício de direitos e deveres políticos, civis e sociais, adotando, no dia-a-dia, atitudes de participação, solidariedade, cooperação e repúdio às injustiças e discriminações, respeitando o outro e exigindo para si o mesmo respeito.
      2. Posicionar-se de maneira crítica, responsável e construtiva nas diferentes situações sociais, respeitando a opinião e o conhecimento produzido pelo outro, utilizando o diálogo como forma de mediar conflitos e de tomar decisões coletivas.
      3. Perceber-se integrante, dependente e agente transformador do ambiente, identificando seus elementos e as interações entre eles, contribuindo ativamente para a melhoria do meio ambiente.
      4. Conhecer e valorizar a pluralidade do patrimônio sócio-cultural brasileiro, posicionando-se contra qualquer discriminação baseada em diferenças culturais, de classe social, de crenças, de sexo, de etnia ou outras características individuais e sociais.
      5. Conhecer características fundamentais do Brasil nas dimensões sociais, materiais e culturais como meio para construir progressivamente a noção de identidade nacional e pessoal e o sentimento de pertinência ao país.
      6. Desenvolver o conhecimento ajustado de si mesmo e o sentimento de confiança em suas capacidades afetiva, física, cognitiva, ética, estética, de inter-relação pessoal e de inserção social, para agir com perseverança na busca de conhecimento e no exercício da cidadania.
      7. Utilizar as diferentes linguagens – verbal, matemática, gráfica, plástica e corporal – como meio para expressar e comunicar suas idéias, interpretar e usufruir das produções da cultura.
      8. Utilizar a Língua Portuguesa para compreender e produzir, em contextos públicos e privados, mensagens orais e escritas, atendendo a diferentes intenções e contextos de comunicação.
      9. Questionar a realidade formulando-se problemas e tratando de resolvê-los, utilizando para isso o pensamento lógico, a criatividade, a intuição, a capacidade de análise crítica, selecionando procedimentos e verificando sua adequação.
      10. Saber utilizar diferentes fontes de informação e recursos tecnológicos para adquirir e construir conhecimentos.
      11. Conhecer e cuidar do próprio corpo, valorizando e adotando hábitos saudáveis como um dos aspectos básicos da qualidade de vida e agindo com responsabilidade em relação à sua saúde e à saúde coletiva.

Como medir o atingimento destes objetivos com provas de múltipla escolha ou mesmo com as provas realizadas – ou seja, com os atuais índices utilizados?

Cada classe, cada aluno, cada situação de ensino reflete características únicas e singulares.

Os índices oficiais não querem saber se a escola é situada em área de violência ou de pobreza (isso afeta muito mais do que vocês possam imaginar o rendimento dos alunos); não querem saber se a escola tem portas nas salas (faz grande diferença e na minha escola 50% das salas não têm portas); não querem saber se a escola tem coordenação ou supervisão educacional ou se os professores têm que se virar sozinhos; não querem saber se nos corredores há pessoas – inspetores, guardas, seja lá o que for – para ajudar a manter a ordem e o silêncio, fundamentais no estudo; não querem saber se a escola se localiza em frente a uma via barulhenda ou fedorenta, se tem caminhões transitando o dia inteiro ou se fica perto de uma lixeira; não querem saber se há carteiras suficientes na escola, se os livros já chegaram, se os professores têm acesso a cópias para distribuir exercícios e práticas diferentes aos alunos; não querem saber nem se os professores têm a disposição materiais simples, como pincel para quadro branco, papel, cartolina ou outros; não querem saber se na escola há sala de leitura com acesso livre, com alguém tomando conta e se relacionando com os alunos; não querem saber se as novas mídias já estão inseridas para ajudar os professores, tal qual data-show ou sala de informática com computadores que funcionem de fato e acesso à internet; não querem saber se há pátio, quadra, espaço suficiente para realizar brincadeiras, jogos, ou mesmo para as crianças brincarem ou relaxarem entre uma aula ou outra; não querem saber se há falta de professores por culpa dos próprios gestores…

Todos esses problemas, caros amigos, as escolas enfrentam em menor ou maior grau, e todos eles, alguns mais outros menos, influenciam nos resultados “oficiais”.

As escolas que são mais agraciadas pelo poder público (podem ter certeza de que isso existe), por exemplo, tendem a ter menos problemas ou a resolver mais rapidamente seus problemas.

Aquelas que são mais centrais, com mais fácil acesso, mais longe das áreas de risco, tendem a ter mais professores e a receber mais “ajuda” do poder público.

As que são mais isoladas, mais dentro da violência, das comunidades, tendem a estar mais suscetíveis a esta mesma violência.

Nestas, muitas vezes, a questão  mais premente e mais importante para os professores, para os educadores de verdade, não são os índices governamentais de acertos em questões de múltipla escolha, mas são questões de violência, do famoso buylling, de relacionamentos, do tráfico, das agressões sofridas dentro da própria casa, dos relacionamentos entre alunos e alunos, alunos e professores, direção com alunos e com professores.

São estas as questões que grande parte do tempo nos afetam, entre uma aula e outra, durante as aulas, depois das aulas. E, dentre estas questões, entremeados aos conteúdos, tentamos ensinar algo dos conteúdos.

Esses, que as outras escolas que não estão dentro da violência ou da pobreza e que não estão longe das vistas de todos, estão trabalhando e ensinando durante grande parte de seu tempo.

Mas quando um professor está em sala e ouve uma pergunta tal qual “como o pênis fica duro?” e começa a conversar com os alunos o mecanismo de ereção, isso é educação. Pois esta conversa muitas vezes não termina no pinto duro ou pinto mole, mas nas relações sexuais, nos namoros, nos cuidados, nos métodos anticonceptivos, na questão cultural da sexualidade e na necessidade que elas têm (sem o saber) de ficar grávidas para ser alguém na vida.

Quando um professor se mete no meio de uma briga de alunos, faz a mediação, vai à rua conversar com o irmão de um deles que é envolvido com o tráfico, diz que a briga não resolve, conversa, apazigua a situação, o que faz com que um dos alunos – que estava há duas semanas afastado da escola por medo – volte, isso é educação da melhor qualidade.

Quando os próprios professores têm que, com jogo de cintura, solicitar diversos alunos que parem de andar pelos corredores atrapalhando as aulas dos outros, ao invés de estar em sala, isso é educação.

Quando um professor faz uma sessão de cinema com um filme que tem forte mensagem social e discute este filme, trocando ideias com os adolescente, independente da matéria que leciona, isso é educação.

Quando um professor fica sabendo de uma série de problemas pessoais de seus alunos (na família, nos namoros, por conta da violência, por conta da pobreza…) e tenta, junto com seus colegas, com a equipe pedagógica quando ela existe, com a direção quando é parceira, resolver estas questões, isso é educação.

Quando um professor percebe que um aluno não acompanha a turma porque mal sabe ler e escrever e se preocupa, buscando caminhos – às vezes institucionais sendo aplicados, muitas outras vezes inexistentes – para que aquela situação se resolva, para que aquele aluno possa superar suas dificuldades, isso é educação. [Como ele chegou ali é outra discussão, causada justamente pelos problemas que aqui aponto. Por que não foi reprovado para mim não é a pergunta e também é motivo para outro artigo, pois a reprovação sucessiva pura e simples não o teria ensinado, mas expulsado da escola]

Quando os professores diariamente estão tentando superar todas as dificuldades causadas pela violência do entorno (que invade a escola de muitas maneiras), a desestruturação e falta familiar, o descaso das autoridades com a questão social (saúde, moradia, emprego), o relacionamento entre os próprios alunos, a falta de estrutura humana e material das escolas para poder dar conta de fazer daquela criança ou adolescente um cidadão, consciente, leitor, pensante, critico e, também, com um cabedal de conteúdos mínimos, isso é educação.

É batalha diária, muitas vezes visivelmente perdida, não pela falta de esforço dos combatentes, mas pela força do lado inimigo.

Isso é educação e não é medido por índices oficiais.

Mas esta educação diária, pessoal, envolvente, do dia-a-dia, não aparece nos índices governamentais.

Recebi este trecho abaixo do meu amigo João Carlos, editor do Chi vó, non pó:

Sejamos realistas: os professores não são fazedores de milagres. Eles podem fazer pouca coisa para resolver os problemas que estudantes problemáticos trazem para as aulas todos os dias, o que inclui negligência e abuso pelos responsáveis e problemas médicos e de saúde mental. As maneiras óbvias e sutis que a pobreza tem para inibir a capacidade de aprendizado de uma criança – desde problemas de audição, visão e dentais, até maiores incidências de asma e pouca comunicação verbal em casa – são fatos bem documentados.

Então, vamos procurar melhorar o estado das famílias. Atacar os colégios e os professores faz todos se sentirem grandes reformadores, mas os problemas começam bem antes de uma criança passar pelo portão de uma escola.

Fonte: The Washington Post – Five Miths About Americas’s Schools.

Mas isto não é medido pelos índices oficiais, nem levado em conta pra tachar uma escola de “boa”, outra de “ruim”, ou tachar um professor de competente, outro de “mau professor”, expressão que tem estado tão em mídia.

Minha escola melhorou o IDE-Rio no ano passado… mas, será que ela “melhorou”?

Abraços,

Declev Reynier Dib-Ferreira
Educador, pelos índices oficiais, mau professor

Declev Dib-Ferreira

Declev Reynier Dib-Ferreira sou eu, professor, biólogo, educador ambiental, especialista em EA pela UERJ, mestre em Ciência Ambiental pela UFF, doutorando em Meio Ambiente pela UERJ. Atuo como professor na rede municipal de educação do Rio de Janeiro e também na Fundação Municipal de Educação de Niterói (FME), no Núcleo de Educação Ambiental (NEA). Sou coordenador de educação da OSCIP Instituto Baía de Guanabara (IBG) e membro/facilitador da Rede de Educação Ambiental do Rio de Janeiro (REARJ)... ufa! Fiz este blog para divulgar minhas idéias, e achei que seria um bom espaço para aqueles que quisessem fazer o mesmo, dentro das temáticas educação, educação ambiental e meio ambiente. Fiz outro blog, com textos literários (http://hebdomadario.com), no qual abro o mesmo espaço. Divirtam-se.

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