Escola, mas pode chamar de Casa da Mãe Joana

 

 Escola, mas pode chamar de Casa da Mãe Joana

Estou trabalhando com construção de modelos de máquinas, como guindastes, com roldanas, planos inclinados, etc.

Os alunos têm à disposição madeira, serrote, pregos, martelo, isopor, papelão, cola, tesoura…

Apesar de não aprofundar nos conteúdos propriamente ditos, assim tento fazer uma aula diferente, mais interessante e que possa absorver os faz-nada das turmas.

Vem dando “certo”, se se pode dizer isso. Mas, sempre tem os contratempos dos faz-nada.

Numa das aulas, três alunos pegam seringas escondidos e, no recreio, ficam molhando todo mundo com elas.

Aí, pergunto: tenho que dar aulas, explicar, ajudar os que estão construindo as maquetes, ou tenho que ficar tomando conta daqueles que, mesmo assim, não querem nada e ainda por cima roubam meus materiais?

Ahtá… tenho que fazer tudo – e bem! Rasgo minha camisa e sai de dentro um uniforme do “super-professor”.

Casa da Mãe Joana

Noutro dia, solicitei gentilmente que esses três ficassem na sala de leitura fazendo um exercício do livro, enquanto fiquei com o resto da turma na sala de ciências, continuando o trabalho.

 

Estou em sala fazendo o possível, segurando daqui e dali, mandando sentar, ajudando um grupo, colocando aluno pra dentro de sala, pegando material, limpando bagunça, respondendo dúvidas, martelando aqui, serrando ali, pregando acolá, pedindo pra sentar na cadeira e sair da mesa quando, de repente, uma “mãe” aparece na frente da escola e, com a porta entreaberta, os alunos a veem.

Alvoroço geral, “a mãe veio pegar fulano”, “vai bater em cicrano”, “vai passar sabão”, “bateu na filha dela”, “jogou areia na menina”, “agora f*”.


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Corre pra cá, corre pra lá. “Agora vai, fulano”; “Vai encarar?”; “Sai da sala!”; “Eu não, eu não!”…

Chega a outra turma na porta, pois o tempo acabou e agora tenho que ser ator de outra. A que está dentro não quer sair, a que está fora entra.

Duas turmas na sala de ciências que mal cabe uma.

Mais uns minutos, a mãe na porta, bate boca com um, discute com outra.

Junta gente no corredor pra ver.

Um ou dois alunos continuam o trabalho. Sim, alheios a tudo, continuam o trabalho.

A mãe discute. Uns fogem, outros calam.

Chamo a coordenadora e peço para levar a mãe.

Uma turma sai, com esforço.

Outra turma já tá dentro.

Eu morro.

Mas deve ser culpa minha, porque sou professor, incompetente, sem formação e preguiçoso.

Abraços,

Declev Reynier Dib-Ferreira
Buscando a porta de saída

9 comentários em “Escola, mas pode chamar de Casa da Mãe Joana”

  1. No colégio em que eu trabalhava, não era permitido tirar aluno de sala pois, fora de sala, sem supervisão, ele poderia usar drogas, entupir as privadas do banheiro com papel, cometer suicídio, etc. Ou seja, o aluno poderia me estapear em sala de aula, que eu não poderia tirá-lo de sala. É assim que se tira a autoridade do professor. O aluno testa até onde não é penalizado. Se não é penalizado em nenhum momento, não há limites.

  2. Passei por uma encrenca semelhante, de ter de juntar duas turmas no auditório e segurar o rojão – porque os outros professores estavam tirando dia do TRE e a fiscalização do Tribunal de Contas do Município chegou de surpresa. As turmas não podiam ser liberadas sem ter aulas, por causa da lei do Tio Carlos. Mas, por causa de uma lei mal formulada, fiquei com quase 100 alunos, num auditório quente, fazendo aulinha de cópia, até as “visitas” irem embora.

  3. Realmente, “isso”, que Fátima e Luana comentaram, não é aula. Também já tive que “entreter” turmas inteiras na falta de professores e é sempre um caos. Muito frustrante. Sabe “pão e circo”? Ali vc tem que ser o circo, o que dá muita raiva!
    Quanto a sua aula, Declev, é claro que não foi culpa sua os alunos dispersarem! Mas isso mostra, pra mim, o quanto a escola ainda fala uma língua que não tem nada a ver com a vida dos alunos fora dela. Tanto que todos queriam saber da briga da mãe com a filha, ver o que ia acontecer, etc., já que é o tipo de coisa comum de acompanharem no dia a dia em suas comunidades. Sobraram dois interessados na atividade que vc propôs. Talvez esses dois venham a ser os mais interessados em ciências realmente; outros podem ter outras preferências.
    O fato é que esse esquema antigo, de sala de aula durante horas por dia, já funcionava mal no meu tempo – e tenho 51 anos! -, imagina agora!
    Toda a estrutura, o sistema de ensino, a forma de se pensar escola, etc., tem que mudar. E, mesmo assim, dos imensos problemas sociais e psicológicos que esses alunos padecem a escola nunca poderá dar conta sozinha. Poderá apenas ajudar, em algumas coisas.
    Existe um imenso abismo entre o que os alunos são chamados a se interessar nas escolas e o que realmente os interessa fora delas. E isso vai muito além de uma simples questão de limites, respeito à autoridade e tudo mais que tem sido repetido há anos, inutilmente, por tantos profissionais de educação…
    Entendo o que sentiu, senti o mesmo muitas vezes (no meu caso, até desistir do trabalho em escola), mas vc sabe bem que a situação é muito mais complexa e ficar procurando um “culpado” é uma injustiça, uma bobagem e uma irrealidade, até porque, quando colocamos nesses termos, culpado não é sempre o outro e nem sempre nós mesmos apenas…
    Abraços…

    1. Oi Regina,

      Nesse caso, realmente, não há culpados.

      Simplesmente, é.

      Mas essa questão do que os alunos se interessam lá fora e o que a escola tem a oferecer é complexa.

      Sinceramente, do que eles se interessam, muitas vezes, quero distância. E quero que deixem de se interessar.

      Não quero aprofundar o interesse deles pelo programa do ratinho ou do faustão, pelo funk proibidão, pelo traficante, pelas armas, pelas brigas…

      A função da escola, para mim, é justamente fazê-los se interessar pela cultura letrada, por outras culturas para além de onde estão imersos no bairro violento em que vivem.

      Quero a eles o quereria para meus filhos.

      Se não for assim, eu saio da brincadeira.

      E quem acha que o que eles gostam é o que deve ser respeitado e trazido para dentro da escola – NÃO estou dizendo que é o que você está dizendo, mas há pessoas que assim pensam! -, primeiramente coloque seus filhos ou netos em escolas com este perfil e deixe-os gostar de funk proibidão, armas, traficantes, jogadores de futebol ridículos, programas como ratinho ou faustão.

      Depois me convença de que está falando à vera.

      Eu quero é mais para eles.

  4. Declev,
    É um direito que você tem, se posicionar dessa maneira.
    Mas te digo que, se chegamos num país novo, nós é que temos que nos esforçar para falar a língua deles e não eles a nossa, certo? É a mesma coisa.
    Se vc chega numa escola de periferia, onde a maioria mora em comunidades e já sai julgando o péssimo gosto que vc acha que eles tem para se divertir, então vc pode estar chegando lá falando outra língua. Pode passar uma ideia de elitismo, de quem se acha superior, cria um afastamento já de cara entre você e os alunos e isso só piora o clima nas aulas.
    Primeiro é preciso ouvir, conhecer, compreender e respeitar. Depois, conquistar, cativar para coisas novas. E, só aí, apresentar esse novo aos poucos, respeitando sempre o fato de que eles (os alunos e suas famílias) podem continuar preferindo, mesmo assim, o que você ou outros profissionais consideram nocivo, alienante, emburrecedor e/ou de mau gosto.
    Eu, pessoalmente, também não gosto nem um pouco de programas como o do Ratinho, do sensacionalismo das poucas matérias jornalísticas que nossos alunos assistem na TV e ouvem no rádio, não gosto da cultura do tráfico, das armas e das brigas, etc. O Faustão eu já acho mais simpático, mais competente, popular sim, mas melhor do que os outros citados. Mas venho de uma cultura de classe média, de escola particular, muitas vezes de zona sul, e isso não encontra eco neles, isto é, nossos alunos não acham interessante e nem acham graça em muito do que os profissionais das escolas onde estudam acham. E passam, muitas vezes, a esconder parte do que pensam, pois sabem que os professores e outros profissionais vão criticar ou torcer o nariz e isso, como eu já disse, cria um afastamento cada vez maior. E haja abismo!
    Não acho bom agir assim, nem em termos estratégicos e nem em termos de respeito às diferenças.
    Também não gosto de tantas letras horrorosas, que só denigrem a mulher, na maioria dos funks, mas o ritmo em si não acho ruim. Mas eles gostam! E é em cima disso, da realidade e dos gostos deles, que temos que trabalhar! É a partir daí e não saindo já criticando tudo de cara!! E, com isso, com a confiança e o respeito que passamos a ganhar deles, por não termos tratado como inferior sua cultura e seus gostos (e isso precisa ser sincero!), podemos ir alargando horizontes e mostrando que existem outras formas de entretenimento e arte, outras possibilidades culturais, outras formas de relacionamento e de se tratar uns aos outros, um mundo imenso a ser explorado e aprendido, mas sem diminuir o deles! Até porque o mundo da cultura letrada não protege ninguém de ser hipócrita e de fazer outros horrores na vida, talvez menos óbvios do que armas e programas de TV sensacionalistas, mas muitas vezes até piores.
    Cansei de ouvir queixas de alunos sobre isso, tipo: “não vou nem falar pro professor Beltrano ou pra professora Sicrana ou pra diretora “X” que eu gosto disso e todo mundo lá em casa gosta, porque ele não gosta.”
    Olha que loucura! Isso é anti-democrático!! Estamos ensinando que devem respeitar as diferenças e muitos de nós são os primeiros a não respeitar???
    Por isso é sempre mais fácil encontrar culpados fora, já que ninguém gosta de ser lembrado que pode estar errando feio nisso, mesmo com a melhor das intenções…
    Infelizmente vi muitos professores e outros educadores se posicionarem assim. Creio que vc, Declev, não seja assim tão radical. Mas, se for, repito: é um direito seu.
    Apenas penso um pouco diferente.
    Um abraço…

    1. Oi Regina,

      Mais uma vez, estamos falando a mesma lingua.

      Concordo plenamente quando você diz “Primeiro é preciso ouvir, conhecer, compreender e respeitar. Depois, conquistar, cativar para coisas novas. E, só aí, apresentar esse novo aos poucos”.

      Mas, sinceramente, a escola não é para aprofundar o mesmo, mas apresentar o novo.

      Se quiserem seguir, é obviamente o livre-arbítrio de cada um.

      Mas acho que temos a obrigação de apresentar, trabalhar outras coisa, para além do que eles vivem.

      É isso.

      Não, não sou tão radical e acho que eles não têm medo de falar comigo sobre nada. Só que eu deixo minha opinião clara para eles e eles deixam as deles para mim.

      Na verdade, vira, muitas vezes, um debate, uma conversa sobre os assuntos.

  5. Claro, Declev!
    É isso aí.
    Sinceridade com eles sempre!
    Mas também paciência. Menos ansiedade em que conheçam e gostem logo do novo que queremos apresentar, porque demora e, muitas vezes, nem acontece. Precisamos aprender a lidar com essa frustração e começar a perceber as belezas que eles vêem nas coisas que gostam também, para melhor nos comunicaremos e, assim, melhor será a troca. Porque é uma troca. A gente aprende pra caramba com eles!
    Se não partirmos do mundo que eles conhecem, sem preconceitos, nunca teremos a menor chance nem de entender e valorizar o deles e nem de mostrar algo realmente novo que os cative.
    Beijos…

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